sexta-feira, 11 de março de 2011

Não aglutinados


Meninos descalços jogam bola em meio à poeira. Com pedrinhas, criam as traves. O esgoto descoberto lhes serve de linha lateral. O áspero asfalto, de gramado. A cidade onde vivem supera duas centenas de milhares de habitantes. Mas o bairro é periférico. Eles não esperam receber do secretário de esportes uma quadra coberta ou um verdadeiro campo de futebol. Bem que gostariam de ter um espaço designado exclusivamente para o esporte, com balizas branquinhas, cujas redes estufariam após marcarem gols. Mas, não tendo tal espaço, os meninos ainda usam pedrinhas. Ainda jogam no abrasante asfalto, que dividem com carros, ônibus, motos, carroças, bicicletas...
         Não é incomum o fato de que esses meninos nada esperam do secretário municipal de esporte. Na verdade, mesmo as pessoas de classes econômicas mais abastadas não contam com o trabalho dele.
         Meninos, jovens e adultos frequentam academias, clubes esportivos, aulas de natação ou de dança particulares se tiverem recursos financeiros para isso. A quem não os tem, só resta improvisar.
         É assim que funciona. Por essa razão, as classes “médias” e “altas” não costumam protestar em favor de obras públicas que promovam o esporte. Quando elas precisam de quadras de futsal, academia, áreas de lazer, elas pagam por isso.
         Pagam por algo que deveria ser gratuito, algo que o governo deveria dar à sociedade. Não é esse um dos direitos dos cidadãos?
         Durante a História do Brasil, o poder público não se mostrou um elemento aglutinante da sociedade, algo que juntasse pessoas de diferentes “classes sociais” na missão de planejar os espaços públicos, resgatar cidadãos da pobreza e “fortalecer a economia”. Não existe tradição de planejamento urbano, especialmente na região periférica e em favelas. Casas são construídas sem o consentimento de autoridades. Ruas e lojas acompanham essas precárias expansões urbanas.
         Em propaganda eleitoral, quando se quer enfatizar o perfil de gestor público de um candidato, a imagem o mostra olhando um mapa e discutindo a obra com os engenheiros e equipe. Tomando tal símbolo por medida, pode-se dizer que a população não se sente parte da equipe, ela não costuma ser chamada a construir a cidade junto aos seus governantes.

Um comentário:

Victor Carvalho disse...

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Construção, Chico Buarque.